domingo, 10 de abril de 2016

As cartas como recurso de construção política



As cartas como recurso de construção política
                                                                   Luciana Paludo*

É difícil e tem sido difícil se posicionar - pelo simples fato da violência que brota, à presença de uma ideia que não seja confluente com as ideias dos que estão à nossa volta. Então, ficamos receosos, acuados. E isso incita à segmentação social; à reunião em guetos; à procura de pares de pensamento. Por um lado é bom, mas, por outro, também alimenta dicotomias. Mas, digo: às vezes isso é um recurso de sobrevivência.

            Neste sábado uma das coisas que me fez feliz, juntamente com a alegria de estar viva e de ter o amor da minha família, foi receber uma carta de uma amiga. Minha amiga Roberta mora no Rio Grande do Norte; saiu do Rio Grande do Sul, após ter concluído sua licenciatura em Dança, para lá se estabelecer e trabalhar. Foi então que um dos trechos de sua carta deflagrou a elaboração de concepções que andavam perambulando em meus pensamentos, as quais ainda não haviam se aglutinado em ‘dizeres’ organizados na forma escrita. O trecho da carta de Roberta dizia assim:

Reflexões íntimas à parte, tudo anda bem por aqui, com saúde e com a disponibilidade necessária na vida pra aprender. 
Mas ainda assim ando um pouco preocupada (e tenho certeza que tu também) com a situação entristecedora do nosso país, dos nossos "irmãos de pátria" perdidos nesse prazer pelo ódio. Não sei exatamente como isso tem se manifestado pelo Sul, vejo só de longe, mas aqui soa como uma libertação sem escrúpulos do preconceito e da intolerância históricos, intensificados pelo fundamentalismo religioso coletivo do RN, e agora usufruindo do campo político instável do momento. 
Eu faço o que posso, estudo ao máximo, compartilho os estudos, incito a reflexão consciente e a discussão saudável, mas tenho receio que isso chegue ao apogeu tão desastroso que se apresenta diante de nós.
E mais decepcionante pra mim é ver meus colegas de escola básica imersos na desinformação e no senso comum, e, sem saber pra onde ir, deixam com que os outros escolham seus próprios caminhos. E não era pra ser a escola o berço da autonomia do pensar? (PEDRONI, 2016).

            Eis então que lhe respondi.

Minha muito querida amiga Roberta,

            Que feliz estou com suas palavras! Emocionada pela qualidade da escrita e por você dividir a sensação deste momento de extrema conturbação em nosso país. Digo que vivemos a era do protagonismo vazio, no qual as vozes se mesclam em volumes similares. Há uma polifonia nada harmônica e uma confusão de conceitos, concepções e comportamentos. Todos eles reclamam o direito de "estarem certos", absolutamente certos - e de que seus respectivos pontos de vista são a única verdade. Agora imagina uma porção de gente achando a mesma coisa... Pois então, é o nosso país.
            Quando menciono o protagonismo vazio, também me refiro ao aval que as redes sociais conferem para todo e qualquer discurso; na "rede" há os bem fundamentados e os fundamentalistas... Com a licença para o trocadilho, não acredito nessa simples razão dicotômica, do "ou isso ou aquilo"; é muito mais complexo. Há os valores intermediários e os macios; mas, esses valores não encontram espaços, pois que há as ideias que esqueceram de dançar, de se realizarem em formas fluídas. E então, há um embrutecimento e uma simplificação no modo de compreender as circunstâncias e, consequentemente, agir e se posicionar em relação ao momento em que vivemos.
            Repare: quanto mais duro o pensamento, mais barulhento, mais alto o grito. Pois a certeza é barulhenta. A dúvida fala mais baixo; a ponderação é algo que requer desaceleração.
            E então, o que vejo são propriedades que não estão sendo trabalhadas. Quais sejam: a desaceleração, a ponderação, a busca de observar os fatos sem os fanatismos que reduzem a existência às dicotomias simplistas e de fáceis dizeres.
            Sim, pois junto com a era desse protagonismo vazio, há uma porção de "jargões compartilhados" [palavras-Miojo, como costumo me referir]. Ops, se eu não tenho ideia / ou, palavras para expressar a minha ideia, pego aquela frase de efeito "do outro" e largo na minha time line e, pronto. Está realizada a micro catarse individual que se linka a um coletivo. E então, o desejo de pertencimento, de realização; a impressão de estar "colaborando" com os significados de mundo se avoluma; se inflam. Enchem-se de orgulho e de plena razão. E é justamente ali que mora o perigo.
          O perigo desses jargões que pululam em redes e bocas é realmente que o pensamento cristaliza. Encerra-se na "certeza de que estamos certos". E então, o rechaço do outro e do pensamento que é um pouco dissonante do "nosso" começam a atuar como uma espécie de vírus ameaçador. O pensamento começa a gerar 'anticorpos'. E aí se instaura um ciclo de rejeições e hostilidades à diferença.
            Como viver na diferença... E, num jogo de palavras: “com’viver” na diferença é ter a devida paciência de escutar as razões do outro. E nós (para "o outro") também somos "outro". Então, há um apelo, uma necessidade de se falar nisso; de construir essa noção.
            E, como digo na minha tese [sobre coreografias nas graduações em dança no RS]: há uma pluralidade de danças que compõem os cursos de graduação em Dança do RS [e aí façamos a analogia com a sociedade, em relação à pluralidade de pensamentos e concepções de mundo - pois o micro-cosmo de uma sala de aula tem relação direta com a sociedade]. Então, podemos pensar com Stuart Hall nessas identidades fixas que buscam uma (re)afirmação. Na instabilidade que é aquilo que percebemos como "evolução de pensamento e comportamento" nas sociedades. Na razão cíclica dessas concepções que oscilam entre uma liberdade de ação e um retorno a uma "ordem perfeita" que havia no passado (sic). E aqui podemos pensar na democracia (e na sua ausência) nos direitos das 'minorias' (e na ausência desses direitos)... Para algumas pessoas essa "ausência" se refere exatamente às coisas nos seus devidos lugares [por isso clamam por retornos absurdos]. Sim, pelo simples fato de que isso faz parte de suas referências. E essa referência não 'amacia o olhar' para saber que há outras referências que operam ao seu lado. E lado a lado. 

            Ao dizer isso, recordo de uma citação de Max Weber, a qual se encontra como epígrafe da Parte I, do livro Condição Pós-Moderna de David Harvey; cito:

O destino de uma época que comeu da árvore do conhecimento é ter de... reconhecer que as concepções gerais da vida e do universo nunca podem ser os produtos do conhecimento empírico crescente, e que os mais elevados ideais, que nos movem com mais vigor, sempre são formados apenas na luta com outros ideais que são tão sagrados para os outros quanto os nossos para nós (Max Weber, in, HARVEY, 2014, p. 13).

            Tuas palavras deflagraram essas palavras minhas. Mais do que responder ao e-mail recebido, percebo uma elaboração de minhas incomodações relativas à situação atual de nosso país. É difícil e tem sido difícil se posicionar - pelo simples fato da violência que brota à presença de uma ideia que não seja confluente com outras ideias, dos que estão à nossa volta. Então, ficamos receosos, acuados. E isso incita à segmentação social; à reunião em guetos; à procura de pares de pensamento. Por um lado é bom, mas, por outro, também alimenta a dicotomia. Mas, digo: às vezes isso é um recurso de sobrevivência.

            Continuemos, Roberta, continuemos nossos trabalhos nos lugares que por ora habitamos. Que sejamos fortes, corajosas, generosas, para podermos colocar em jogo, no ambiente em que estamos, uma forma macia de existir; fluída. Mas, que façamos, também, escolhas. Que tenhamos espaço [ou, que consigamos construir esses espaços] para argumentar nossas escolhas.
             No conceito de coreografia que desenvolvo em minha tese, escrevo que coreografias são escolhas; são constituídas de escolhas, portanto, de abandonos. Ou seja, para um movimento estar ali, outro precisou não estar. Podemos agregar outros movimentos, certamente - e trabalharmos na noção de coreografia semi-estruturada. Mas, em algum momento será necessária a clareza, para que tenhamos uma 'estética' que ficará aparente; algo que nos colocará em jogo politicamente. Pois que a estética anda ao lado da ética – ou, incita as relações que serão deflagradoras de uma ética, justamente por nos colocar em jogo com o(s) outro(s). Justamente por operar nessas equações que denominamos "escolhas" e posicionamentos. [Ando observando as "coreografias cotidianas"... As organizações, as estruturas, os 'figurinos', e, pasme, até as dancinhas!] 

Que bom que você me escreveu! E me fez companhia neste tempo em que fiquei escrevendo essas palavras.

Um forte e afetuoso abraço, cheio de ar na cintura escapular.

Lu.
09/04/2016


Referências:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DPeA, 2005.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. 25. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
PEDRONI, Roberta. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <lupaludo@terra.com.br> em: 09 abr. 2016.

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Luciana Paludo é bailarina, bacharel e licenciada em Dança (PUC-PR/ Fundação Teatro Guaíra). Além de produzir e de coreografar seus trabalhos solos e apresentá-los em diversas cidades do Brasil, realiza investigações coreográficas em colaboração com outros artistas; faz parte do Coletivo de Dança da Sala 209, na Usina do Gasômetro, Porto Alegre. Já desenvolveu trabalho como professora e coreógrafa no Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre, na Companhia Municipal de Dança de Caxias do Sul e na Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre (como professora). É especialista em Linguagem e Comunicação (UNICRUZ), mestre em Artes Visuais (UFRGS), doutora em Educação (UFRGS). Em sua tese pesquisou sobre o status da coreografia nos cursos de Graduação em Dança do RS. Foi professora do Curso de Dança da UNICRUZ (2000-2008), do Curso de Dança da ULBRA (2009-2011). Atualmente é professora do Curso de Dança da UFGRS.




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