Materiais
de criação em arte: as ideias não caminham sozinhas
[Ou, “Pernas pra que te quero”]
Luciana Paludo
Iniciei o dia do professor instigada,
intrigada com uma certa constatação que, cada vez mais, se reformula em meus
pensamentos, a respeito do ensino da criação em dança. Hoje é dia 15 de outubro
de 2015, dia do professor. Como professora universitária no campo da dança, sendo
minha área de concurso a composição coreográfica, nos últimos anos, uma de minhas
funções tem sido estar como mediadora de atividades criativas, em diversas situações.
Então, essa problemática sempre está ativa em
meus pensamentos, uma vez que fico engendrando exercícios, modos de falar a
respeito de coisas que possam deflagrar processos de criação. Certo, mas, essa
é uma das vias desse trabalho; e posso dizer que tem sido uma via atenta, para
detectar as demandas que vêm do outro lado dessa história. E, sim, para que
possamos trabalhar em colaboração.
Hoje
fui derrubada da cama pela inquietação; acordei com algumas frases pululando na
mente. Ando encafifada com o processo, ou, com o caminho que temos que
percorrer entre a concepção e a realização. Neste semestre especificamente, pelo
motivo de ser a professora titular da disciplina Produção Cênica. A produção
cênica em dança observa inúmeros elementos e fatores, os quais estarão
relacionados entre si, no momento em que nos propomos a compor uma obra em
dança: os corpos dos bailarinos, as ideias para deflagrar composições
coreográficas, as concepções de cenografia e figurino, a concepção e o desenho
de luz, o pensamento e as preocupações a respeito do espaço em que isso será
mostrado; a produção para viabilizar um lugar, um dia, para trazer a público
tanto empenho; a produção de releases, cartazes e textos de divulgação; os
orçamentos e recursos financeiros para viabilizar a produção [o que nos
direciona ao campo da gestão]; o diálogo com os técnicos, com a crítica, com os
produtores culturais. Enfim, se faz necessário uma atenção constante ao que
constitui essa ‘teia da produção’, ou, ainda, essa “cadeia”, sim, porque esses
fatores se interligam, operam em tensões diversas e em diálogos.
Hoje, gostaria de chamar a atenção para a
relação concepção X realização.
Trocando em miúdos, entre a ideia e o desejo de produzir algo – e que isso
ganhe um status cênico – e esse algo se tornar alguma coisa que tenha condições
de ser viabilizado para públicos diversos, existe um caminho a ser trilhado.
Então, é preciso inventar os mapas, sim; mas, é muito necessário que se visite
alguns mapas já feitos por outras pessoas...
Volto a uma frase do título deste pequeno
ensaio: “as ideias não caminham sozinhas”. O que tenho observado em minha vida
artística, migra para as lentes que guiam os meus olhos no momento da docência.
Sempre apostei no trabalho de corpo, para trazer à tona as minhas ideias e, no
meu modo de dar aulas e de instigar a criação em dança, procuro conduzir as
coisas nesse sentido [trabalhem gente, todos os dias, a coisa se faz por aí...]. Nesse sentido, do trabalho continuado, há
uma presença que se faz a cada dia. Na mesma direção desse raciocínio, o que
tenho detectado são espécies de ausências.
E essas ausências se dão no seguinte sentido: uma falta de direção, de plano de
trabalho, de “invenção” do como trazer à tona a ideia. De persistência e foco.
Muitas vezes, concepções bem escritas, bem
fundamentadas esbarram e tropeçam em corpos que não encontram tempo para
refinar as intenções de movimento e fazer com que as ideias tomem a devida
forma [e não estamos, todos nós, artistas contemporâneos, sofrendo pela
escassez do tempo e dos espaços; das impossibilidades de reunir as pessoas nos
mesmos horários para ensaiar – o que dificulta um plano de trabalho?]. Então, vamos
supor que arranjemos tempo e espaço para construir um modo de trabalho, no
intuito de realizarmos uma produção cênica. Nesse tempo-espaço de trabalho, chamaria
a atenção para duas funções: a função direção
de cena e a função preparação
corporal. E isso tem a ver com a concepção, com aquilo que se quer – com aquilo
que motivou o grupo a se reunir, ou, no caso de trabalho individual, a pessoa a
organizar seu tempo-espaço para o trabalho. E isso, absolutamente, não significa
que tenhamos algo a priori [hoje vou
criar a respeito de uma plantação de melancia, por exemplo]. E aqui brinco com
algo aparentemente absurdo para assinalar que a ideia pode ser qualquer uma, de
qualquer ordem.
O
que nos levará à realização dessa concepção é uma capacidade de metaforizar, de
transportar, de imbuir as ideias de células, de respiração, de ossos e músculos...
Esse é o ‘material’ da dança. Mas, ele não é estático e esse movimento é um
modo de proceder, um pensamento que se redimensiona, a cada dia de trabalho,
pelas demandas que surgem, no ato de trabalhar. Quando digo que o corpo é o material
da dança, de forma alguma não exponho isso no sentido de reduzir o corpo a um material. Escrevo assim no sentido de provocar
e de trazer à tona essa discussão, para que possamos olhar para a qualidade de
nossas realizações – e falar sobre isso, de maneira clara, sem rodeios.
Uma direção
cênica eficaz é aquela que trabalha em conjunto com o trabalho de corpo do bailarino [intérprete; intérprete-criador;
performer] – escolha a designação que você se sentir pertencido. Ok, vejamos um
exemplo: digamos que eu tenha um trabalho a partir da improvisação, que eu não
tenha nada em mente a priori. Ora, o
simples fato de eu me propor a fazer um trabalho a partir da improvisação já é
algo que pode ser considerado um a priori.
Não ter um tema específico não significa que estamos a esmo. Ao dançar e criar
uma dança, me propondo que essa criação seja a partir de uma improvisação, já
espero que meu corpo – pelo menos – esteja numa relação estreita de ‘saber de
suas possibilidades’, bem como em diálogo não hierárquico com o espaço; que
estejamos a nos construir, a nos influenciar [corpo e espaço] continuamente.
Tendo
isso em mente, obviamente, já me imbuo de toda espécie de atenção possível. No meu caso, anos e horas a fio de trabalho
diário com a dança, me conectam de uma maneira muito peculiar com o espaço interior-exterior - e
[para falar com as palavras de José Gil] - o “espaço limiar”, a “trincheira” da
pele se atiça ao responder a todo e qualquer sinal e estímulo. Diria que esse estado de
atenção é o que nos possibilita a cuidar
os espaços. Então, sinto que é possível partir dali, desse estado de cuidado; e que a
atenção, nesse caso, já é uma espécie rara do que podemos considerar ‘auto
direção’. Sim, no espaço-tempo da atenção encontra-se uma medida de como estar ali, portanto, de uma
qualidade, de um modo especial de fazer cada movimento. E isso, à medida que
desenvolvo a minha capacidade de composição / improvisação, também é trabalho
de corpo. Quer dizer, no caso da pessoa que cria e dança, essa propriedade eu
nominaria de “auto direção”.
A auto direção, assim, seria uma propriedade
de ‘saber-se’; momento de propriocepção operante, latente, vibrante. Dessa
maneira, mesmo que se tenha algo a priori
[um tema, uma narrativa, um motivo bem específico] para iniciar uma criação -
e, também, mesmo que se tenha uma pessoa específica dentro da teia da produção
cênica, para trabalhar a direção cênica e o trabalho de corpo dos bailarinos -,
o próprio bailarino estará atuando junto, construindo junto; sendo coautor
dessa construção corporal-cênica. Para além de qualquer denominação no programa
[a respeito de quem é a autoria daquela obra], a qualidade do bailarino ter
essa atenção [e realizar uma auto direção] o coloca como construtor de seu
próprio corpo, de seu modo de trabalhar; de suas invenções para aproximar a concepção
da realização, seja qual for a espécie de trabalho que estiver realizando.
Ao fim e ao cabo, para quem assiste a uma
dança, não importa muito se essa dança foi criada a partir de um tema, os se
está sendo criada ali, naquele momento, a partir das propriedades da improvisação.
Importa que haja troca, que haja uma respiração possível de se estabelecer em
conjunto, entre quem faz e quem vê aquela dança. Importa o modo que aquele
corpo maneja o espaço-tempo; a sua afetividade ali. Quem já esteve na cena
sabe: a cena nos desnuda, por mais pesadas que possam ser as vestes, por mais
ornamental que possa vir a ser a cenografia; por mais rebuscada que seja a
iluminação. Quando iniciamos uma dança, temos que chegar até o seu fim. E a
palavra fim aqui tem duplo sentido: o
de finalidade e o de finalização. Ou seja, dizer sem muitas palavras ‘porque
estou ali’ e conseguir chegar até o fim, naquele ato de dança.
Por
último, quero instigar neste dia, como professora, aos estados de atenção possíveis. O que escrevo a respeito da dança sai de um
corpo que busca estar atento; que vibra, a cada instante; que dança e constrói sua dança; que há, mais ou menos, 30 anos inventa modos de existir a partir de
suas ideias, que teimam em virar dança. Com isso, posso dizer que ganhei um
bom instrumental [uma parafernália de coisas] para “estar no papel de condutora”
de processos de criação. O que espero, como professora? Ora, que essa via seja
de mão dupla.
Vou
parar por aqui que é chegada a hora de ir ao estúdio fazer aula; me
aproximar um pouco de minhas intenções, não apenas de dança, mas, eminentemente,
existenciais. Dedico este texto aos meus mestres, os quais me instigaram a
prestar atenção na vida.
Lu,
15/10/2015.
Lindo Lu! To ansiosa pra disciplina de produção cênica!! o/
ResponderExcluirOi, Luciana! A Dani Cezar me indicou falar com você sobre aulas de ballet clássico, como posso falar com você? Obrigada!
ResponderExcluirMaravilhoso!!! Sou fã!!!
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