Foto: Frank Jeske |
Luciana Paludo
O tempo da
delicadeza tem sido uma expressão que tem permeado os meus dias. Vou falar
um pouco aqui, por palavras virtualmente escritas, do que se trata para mim essa
expressão.
O tempo da
delicadeza não está em saber como chegar aos espaços, ou saber quais
palavras ou movimentos usar em cada situação. O tempo da delicadeza consiste em "estar preocupado e
atento" aos modos pelos quais nos relacionamos com o mundo e com as
pessoas. Como na vida, na arte da dança sempre haverá diferenças e defasagens
entre intenção e gesto. Por isso a atenção, por isso o "estar preocupado
como". O filósofo José Gil irá dizer que a dança vive da defasagem. Aquele
gesto ou movimento que não foi possível de se fazer, num determinado dia, em
uma determinada dança, é uma defasagem; mas, ao mesmo tempo, é o que alimenta o
desejo de persistir.
Durante a semana que passou, uma frase se fez quase que
matéria em minha mente; então, verbalizei a frase. Inicialmente, em voz
cochichada, para mim. Depois, falei um pouco mais alto, apenas para formular o
pensamento. Pensei que, ao falar em voz alta, a frase poderia se desdobrar em
energia; se propagar pelo ar, na vibração daquele som. Agora, pela escrita,
aqui, darei um corpo para minha frase-matéria: “eu não voltaria um dia sequer
na minha vida, nem mesmo os dias extraordinários”. E, deixe-me trabalhar para
desdobrar tudo que essa frase
comportou, no máximo do que as palavras que seguirão puderem dar conta.
Os dias que já vivemos, inevitavelmente, foram dias de muito
trabalho. Trabalho feito, energia despendida, lição aprendida. Se olharmos para
o que passou, é para poder revisar e, também, para aprender um pouco mais –
para trabalhar as defasagens. Olhar para o passado é diferente de viver no
passado; desejar o passado ou não conseguir se desprender.
Não ter vontade de “voltar o tempo” pode parecer, a um
primeiro momento, uma indelicadeza. Mas, asseguro que não é. É uma generosidade
– é um tempo da delicadeza se fazendo
hoje, como se, no nosso mais íntimo sentimento, fosse possível agradecer. E são
várias as camadas que caberiam aqui, nesse acontecimento [agradecer]: o dia de
hoje, prenhe de coisas a se fazer, aguardando o nosso empenho; o tanto que
conseguimos nos superar, pelos atos já vividos; a soma das ações que já
realizamos no mundo para cumprir nossa jornada – e me restrinjo agora a esses
três aspectos.
Diria também que não ter o desejo de voltar “um dia sequer” em minha vida,
não é um ato de desdém ao que passou. Não. Apenas tenho a sensação de que já trabalhei [pelo menos tentei trabalhar] o máximo que pude. Então, tem o dia de
hoje, para persistir. Tenho estado muito sozinha para pensar essas coisas, mas,
quando converso com meus filhos ou dou aula, essas formulações acabam por
permear as minhas falas. E o pensamento vira matéria, do lado de fora [porque
já era matéria, dentro].
Dia desses, em um dos encontros das aulas de “Estudos em
composição coreográfica II”, no Curso de Licenciatura em Dança da UFRGS, onde
trabalho, os alunos me perguntaram quanto tempo poderia ter o solo deles.
Então, pensei e não demorou muito para surgir: O tempo da delicadeza. Eles riram e perguntaram o que era isso. Foi
quando comecei a desdobrar a expressão que é um dito recorrente, quando
queremos dizer, por exemplo, “o tempo necessário”. Mas, e como saber até quando
ou quanto é essa medida do “necessário”?
Numa turma de 16 alunos, se cada um extrapolar o tempo ao
mostrar o resultado de seu trabalho, não caberá todos em uma noite, mesmo tendo
quatro créditos seguidos. O tempo da
delicadeza talvez seja o tempo da não saturação; de dar a vez ao outro:
dançar, falar, se posicionar no mundo. Na dança lidamos com a improvisação; alguns
bailarinos, quando iniciam seus trabalhos com a improvisação têm medo, pois
improvisar demanda decisões que deverão ser tomadas de maneira um tanto veloz;
é arriscado. Outros gostam tanto de improvisar que se perdem em suas sensações.
Geralmente estão descobrindo a delícia que é ter a autonomia de criar seus
próprios movimentos, o que pode lhes gerar sensações boas. Nesse segundo caso é
muito fácil perder o tempo da delicadeza:
esquecer de que, por se tratar de um trabalho coletivo, a preocupação com o
tempo, com o espaço e com o outro também é um exercício que deverá ser igual ou
maior do que a criação de sua dança. Diria que é um reposicionamento constante;
os lugares, assim, não são fixos.
Em nossas composições cotidianas – na dança ou na vida -,
temos coreografias mais codificadas [nas quais temos que repetir alguns passos
em uma certa ordem]; temos coreografias construídas a partir de improvisações
[nas quais temos que compor instantaneamente, em acordo às demandas] e, ainda,
para restringir apenas a três exemplos, temos as coreografias semiestruturadas [com
partes fixas e com partes que nos requerem a improvisação]. Importante
salientar que nos três casos citados acima, a invenção é um fator que sempre
deveria estar operando.
Perdemos o tempo da
delicadeza quando pensamos que as coreografias – na vida ou na dança – que
são fixas ou codificadas não necessitam de invenção. Ora, o fazer novamente nos requer uma
atualização. Ultimamente atualizamos os aplicativos, tão logo se anuncia uma
nova versão. Mas, poderíamos nos perguntar: qual está sendo a qualidade de atualidade das nossas
ações, no tempo-espaço-dentro-fora de
nós?
Antes se falou em medidas; de qual seria a medida do “tempo
suficiente”. Na verdade, é como fazer carapinha [uma receita com amendoins caramelizados
que costumo fazer]. E o segredo da carapinha dar certo é o “ponto”, como dizem os
quituteiros. O ponto da minha carapinha está em deixar o amendoim torrar dentro
da panela, caramelizar com o açúcar – o
qual deve ter sua medida casada, em proporção com a água. Também é necessário
um bom preparo físico [porque é, literalmente, um trabalho braçal] e outra dose
excepcional de atenção. Sem o último quesito [a atenção], todos os ingredientes
podem estar corretos, mas, a carapinha desanda. Explico: o açúcar tem que
secar, depois de caramelizar; tem que baixar a chama... Tem que, ainda, esperar
aquele açúcar derreter novamente, para, então, a carapinha achar o “ponto”
[mas, não pode deixar muito na panela, senão vira rapadura!].
Então, inauguro aqui algo que já havia falado muito, antes
de escrever esta crônica “o ponto da carapinha”. Agora vejo que há uma extrema
similaridade entre o ponto da carapinha e o tempo da delicadeza. E, se pudesse
resumir em uma palavra, esta palavra seria “atenção”. Quando cozinhamos, se a
atenção dormir, de nada adianta termos medido com exatidão os ingredientes.
Para a dança, se não tivermos atenção, há um ensimesmamento delirante, o qual
faz com que o bailarino se perca em seu ego – e dali, é um passinho a mais e
caiu na prepotência. E na vida? Ah, a vida...
Sou uma narradora e há tempos trabalho com as palavras de
Walter Benjamin, desenvolvidas em seu texto “O Narrador”, porque com elas
compreendi parte do meu papel no mundo. Parafraseando o autor, o narrador gosta
de dar conselhos; parte de suas vivências para que sua experiência não morra em
si, mas, que possa se desdobrar em pequenos recados, dicas e conselhos para
outras pessoas. Pensando assim, diria que meu conselho nesta breve crônica,
permeada por tantas narrativas, seria: “a atenção às ações nos faz aguçar a
intuição para acertar as medidas”. Nossa, mas, que conselho incerto! Então,
quer dizer que não há fórmulas? Exato. Há caminhos a se seguir. Não há
garantias. Há sempre o risco. Estamos sim, a viver e compor momentaneamente
nossa vida.
Há, então, o dia de hoje, à nossa espera para ser vivido.
E isso nos requer a reinvenção e a reformulação das intenções, mesmo nas
“coreografias mais codificadas”. Por certo, se há todo esse serviço a ser
feito, a cada dia, poderia dizer que a sensação de “não querer viver nenhum dia
que passou novamente” seria uma espécie de economia de energias. Otimização do
tempo que nos cabe, ainda, aqui. Sim, para dar conta do que está ali, hoje.
Para querer [ou continuar a] viver nos dias que já
passaram há um vasto dispêndio de energias, pois perdemos a oportunidade da (re)invenção
do agora [e, que sorte ser “agora”,
como já disse no poema “acabo de não morrer”]. E, vejam, inventar ou reinventar
não necessita ser algo extraordinário. Não, o ordinário pode ser uma dádiva se
a ele também conseguirmos direcionar um olhar, uma atenção, um tempo carregado
de cuidados. Aquele tempo suficiente; da busca das medidas adequadas... das delicadezas.
Porto Alegre, escrito em 04 de julho de 2015.
Observação: Este texto só foi possível de ser escrito porque já fiz muita carapinha e muita coreografia na minha vida.
Reverência aos dois autores citados:
BENJAMIN, Walter. O narrador –
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. P.
197-221.
GIL, José. Movimento Total.
São Paulo: Iluminuras, 2004. [a parte do livro que ele fala das defasagens está
no capítulo “O gesto e o sentido”].
Reverência ao fotógrafo: Fank Jeske que captou o momento de uma ação que Daggi Dornelles me dirigiu, quando realizei uma participação num trabalho dela, juntamente com Tadeu Liesenfeld.
Minha ação exigia um cuidado estremo: eu atravessava o palco, numa caminhada no nível médio e precisava fazer uma trilha de farinha na beira do linóleo. O movimento da peneira tinha que ser coreografado, para a farinha cair espiralada... E também eu precisava cuidar da minha bola azul, a qual conferia todo um sentido para o trabalho.
Abaixo coloco algumas fotos desses parceiros de cena incríveis, lindos sob as lentes do não menos talentoso Frank Jeske. Obrigada a todos.
Ao final do trabalho, agradecimento... |
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