sábado, 4 de julho de 2015

Sobre o tempo da delicadeza


Foto: Frank Jeske

Luciana Paludo

O tempo da delicadeza tem sido uma expressão que tem permeado os meus dias. Vou falar um pouco aqui, por palavras virtualmente escritas, do que se trata para mim essa expressão.
O tempo da delicadeza não está em saber como chegar aos espaços, ou saber quais palavras ou movimentos usar em cada situação. O tempo da delicadeza consiste em "estar preocupado e atento" aos modos pelos quais nos relacionamos com o mundo e com as pessoas. Como na vida, na arte da dança sempre haverá diferenças e defasagens entre intenção e gesto. Por isso a atenção, por isso o "estar preocupado como". O filósofo José Gil irá dizer que a dança vive da defasagem. Aquele gesto ou movimento que não foi possível de se fazer, num determinado dia, em uma determinada dança, é uma defasagem; mas, ao mesmo tempo, é o que alimenta o desejo de persistir.
Durante a semana que passou, uma frase se fez quase que matéria em minha mente; então, verbalizei a frase. Inicialmente, em voz cochichada, para mim. Depois, falei um pouco mais alto, apenas para formular o pensamento. Pensei que, ao falar em voz alta, a frase poderia se desdobrar em energia; se propagar pelo ar, na vibração daquele som. Agora, pela escrita, aqui, darei um corpo para minha frase-matéria: “eu não voltaria um dia sequer na minha vida, nem mesmo os dias extraordinários”. E, deixe-me trabalhar para desdobrar tudo que essa frase comportou, no máximo do que as palavras que seguirão puderem dar conta.

Os dias que já vivemos, inevitavelmente, foram dias de muito trabalho. Trabalho feito, energia despendida, lição aprendida. Se olharmos para o que passou, é para poder revisar e, também, para aprender um pouco mais – para trabalhar as defasagens. Olhar para o passado é diferente de viver no passado; desejar o passado ou não conseguir se desprender.
Não ter vontade de “voltar o tempo” pode parecer, a um primeiro momento, uma indelicadeza. Mas, asseguro que não é. É uma generosidade – é um tempo da delicadeza se fazendo hoje, como se, no nosso mais íntimo sentimento, fosse possível agradecer. E são várias as camadas que caberiam aqui, nesse acontecimento [agradecer]: o dia de hoje, prenhe de coisas a se fazer, aguardando o nosso empenho; o tanto que conseguimos nos superar, pelos atos já vividos; a soma das ações que já realizamos no mundo para cumprir nossa jornada – e me restrinjo agora a esses três aspectos.
Diria também que não ter o desejo de voltar “um dia sequer” em minha vida, não é um ato de desdém ao que passou. Não. Apenas tenho a sensação de que já trabalhei [pelo menos tentei trabalhar] o máximo que pude. Então, tem o dia de hoje, para persistir. Tenho estado muito sozinha para pensar essas coisas, mas, quando converso com meus filhos ou dou aula, essas formulações acabam por permear as minhas falas. E o pensamento vira matéria, do lado de fora [porque já era matéria, dentro].

Dia desses, em um dos encontros das aulas de “Estudos em composição coreográfica II”, no Curso de Licenciatura em Dança da UFRGS, onde trabalho, os alunos me perguntaram quanto tempo poderia ter o solo deles. Então, pensei e não demorou muito para surgir: O tempo da delicadeza. Eles riram e perguntaram o que era isso. Foi quando comecei a desdobrar a expressão que é um dito recorrente, quando queremos dizer, por exemplo, “o tempo necessário”. Mas, e como saber até quando ou quanto é essa medida do “necessário”?
Numa turma de 16 alunos, se cada um extrapolar o tempo ao mostrar o resultado de seu trabalho, não caberá todos em uma noite, mesmo tendo quatro créditos seguidos. O tempo da delicadeza talvez seja o tempo da não saturação; de dar a vez ao outro: dançar, falar, se posicionar no mundo. Na dança lidamos com a improvisação; alguns bailarinos, quando iniciam seus trabalhos com a improvisação têm medo, pois improvisar demanda decisões que deverão ser tomadas de maneira um tanto veloz; é arriscado. Outros gostam tanto de improvisar que se perdem em suas sensações. Geralmente estão descobrindo a delícia que é ter a autonomia de criar seus próprios movimentos, o que pode lhes gerar sensações boas. Nesse segundo caso é muito fácil perder o tempo da delicadeza: esquecer de que, por se tratar de um trabalho coletivo, a preocupação com o tempo, com o espaço e com o outro também é um exercício que deverá ser igual ou maior do que a criação de sua dança. Diria que é um reposicionamento constante; os lugares, assim, não são fixos.

Em nossas composições cotidianas – na dança ou na vida -, temos coreografias mais codificadas [nas quais temos que repetir alguns passos em uma certa ordem]; temos coreografias construídas a partir de improvisações [nas quais temos que compor instantaneamente, em acordo às demandas] e, ainda, para restringir apenas a três exemplos, temos as coreografias semiestruturadas [com partes fixas e com partes que nos requerem a improvisação]. Importante salientar que nos três casos citados acima, a invenção é um fator que sempre deveria estar operando.
Perdemos o tempo da delicadeza quando pensamos que as coreografias – na vida ou na dança – que são fixas ou codificadas não necessitam de invenção. Ora, o fazer novamente nos requer uma atualização. Ultimamente atualizamos os aplicativos, tão logo se anuncia uma nova versão. Mas, poderíamos nos perguntar: qual está sendo a qualidade de atualidade das nossas ações, no tempo-espaço-dentro-fora de nós?

Antes se falou em medidas; de qual seria a medida do “tempo suficiente”. Na verdade, é como fazer carapinha [uma receita com amendoins caramelizados que costumo fazer]. E o segredo da carapinha dar certo é o “ponto”, como dizem os quituteiros. O ponto da minha carapinha está em deixar o amendoim torrar dentro da panela, caramelizar com o açúcar –  o qual deve ter sua medida casada, em proporção com a água. Também é necessário um bom preparo físico [porque é, literalmente, um trabalho braçal] e outra dose excepcional de atenção. Sem o último quesito [a atenção], todos os ingredientes podem estar corretos, mas, a carapinha desanda. Explico: o açúcar tem que secar, depois de caramelizar; tem que baixar a chama... Tem que, ainda, esperar aquele açúcar derreter novamente, para, então, a carapinha achar o “ponto” [mas, não pode deixar muito na panela, senão vira rapadura!].
Então, inauguro aqui algo que já havia falado muito, antes de escrever esta crônica “o ponto da carapinha”. Agora vejo que há uma extrema similaridade entre o ponto da carapinha e o tempo da delicadeza. E, se pudesse resumir em uma palavra, esta palavra seria “atenção”. Quando cozinhamos, se a atenção dormir, de nada adianta termos medido com exatidão os ingredientes. Para a dança, se não tivermos atenção, há um ensimesmamento delirante, o qual faz com que o bailarino se perca em seu ego – e dali, é um passinho a mais e caiu na prepotência. E na vida? Ah, a vida...

Sou uma narradora e há tempos trabalho com as palavras de Walter Benjamin, desenvolvidas em seu texto “O Narrador”, porque com elas compreendi parte do meu papel no mundo. Parafraseando o autor, o narrador gosta de dar conselhos; parte de suas vivências para que sua experiência não morra em si, mas, que possa se desdobrar em pequenos recados, dicas e conselhos para outras pessoas. Pensando assim, diria que meu conselho nesta breve crônica, permeada por tantas narrativas, seria: “a atenção às ações nos faz aguçar a intuição para acertar as medidas”. Nossa, mas, que conselho incerto! Então, quer dizer que não há fórmulas? Exato. Há caminhos a se seguir. Não há garantias. Há sempre o risco. Estamos sim, a viver e compor momentaneamente nossa vida.
Há, então, o dia de hoje, à nossa espera para ser vivido. E isso nos requer a reinvenção e a reformulação das intenções, mesmo nas “coreografias mais codificadas”. Por certo, se há todo esse serviço a ser feito, a cada dia, poderia dizer que a sensação de “não querer viver nenhum dia que passou novamente” seria uma espécie de economia de energias. Otimização do tempo que nos cabe, ainda, aqui. Sim, para dar conta do que está ali, hoje.
Para querer [ou continuar a] viver nos dias que já passaram há um vasto dispêndio de energias, pois perdemos a oportunidade da (re)invenção do agora [e, que sorte ser “agora”, como já disse no poema “acabo de não morrer”]. E, vejam, inventar ou reinventar não necessita ser algo extraordinário. Não, o ordinário pode ser uma dádiva se a ele também conseguirmos direcionar um olhar, uma atenção, um tempo carregado de cuidados. Aquele tempo suficiente; da busca das medidas adequadas... das delicadezas.

Porto Alegre, escrito em 04 de julho de 2015.

Observação: Este texto só foi possível de ser escrito porque já fiz muita carapinha e muita coreografia na minha vida.

Reverência aos dois autores citados:
BENJAMIN, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 197-221.
GIL, José. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2004. [a parte do livro que ele fala das defasagens está no capítulo “O gesto e o sentido”].

Reverência ao fotógrafo: Fank Jeske que captou o momento de uma ação que Daggi Dornelles me dirigiu, quando realizei uma participação num trabalho dela, juntamente com Tadeu Liesenfeld.
Minha ação exigia um cuidado estremo: eu atravessava o palco, numa caminhada no nível médio e precisava fazer uma trilha de farinha na beira do linóleo. O movimento da peneira tinha que ser coreografado, para a farinha cair espiralada... E também eu precisava cuidar da minha bola azul, a qual conferia todo um sentido para o trabalho.
Abaixo coloco algumas fotos desses parceiros de cena incríveis, lindos sob as lentes do não menos talentoso Frank Jeske. Obrigada a todos.




Ao final do trabalho, agradecimento...




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