As cartas como recurso de construção política
Luciana Paludo*
É difícil e tem sido
difícil se posicionar - pelo simples fato da violência que brota, à presença de
uma ideia que não seja confluente com as ideias dos que estão à nossa volta. Então,
ficamos receosos, acuados. E isso incita à segmentação social; à reunião em
guetos; à procura de pares de pensamento. Por um lado é bom, mas, por outro,
também alimenta dicotomias. Mas, digo: às vezes isso é um recurso de
sobrevivência.
Neste sábado uma das coisas que me fez feliz, juntamente
com a alegria de estar viva e de ter o amor da minha família, foi receber uma carta de uma amiga. Minha amiga Roberta
mora no Rio Grande do Norte; saiu do Rio Grande do Sul, após ter concluído sua licenciatura
em Dança, para lá se estabelecer e trabalhar. Foi então que um dos trechos de sua carta
deflagrou a elaboração de concepções que andavam perambulando em meus
pensamentos, as quais ainda não haviam se aglutinado em ‘dizeres’ organizados
na forma escrita. O trecho da carta de Roberta dizia assim:
Reflexões
íntimas à parte, tudo anda bem por aqui, com saúde e com a disponibilidade
necessária na vida pra aprender.
Mas
ainda assim ando um pouco preocupada (e tenho certeza que tu também) com a
situação entristecedora do nosso país, dos nossos "irmãos de pátria"
perdidos nesse prazer pelo ódio. Não sei exatamente como isso tem se
manifestado pelo Sul, vejo só de longe, mas aqui soa como uma libertação sem
escrúpulos do preconceito e da intolerância históricos, intensificados pelo
fundamentalismo religioso coletivo do RN, e agora usufruindo do campo político
instável do momento.
Eu
faço o que posso, estudo ao máximo, compartilho os estudos, incito a reflexão
consciente e a discussão saudável, mas tenho receio que isso chegue
ao apogeu tão desastroso que se apresenta diante de nós.
E
mais decepcionante pra mim é ver meus colegas de escola básica imersos na
desinformação e no senso comum, e, sem saber pra onde ir, deixam com que
os outros escolham seus próprios caminhos. E não era pra ser a escola o berço
da autonomia do pensar? (PEDRONI, 2016).
Eis então que lhe respondi.
Minha muito querida amiga Roberta,
Que feliz estou com
suas palavras! Emocionada pela qualidade da escrita e por você dividir a sensação deste
momento de extrema conturbação em nosso país. Digo que vivemos a era do
protagonismo vazio, no qual as vozes se mesclam em volumes similares. Há uma
polifonia nada harmônica e uma confusão de conceitos, concepções e
comportamentos. Todos eles reclamam o direito de "estarem certos",
absolutamente certos - e de que seus respectivos pontos de vista são a única
verdade. Agora imagina uma porção de gente achando a mesma coisa... Pois então,
é o nosso país.
Quando menciono o
protagonismo vazio, também me refiro ao aval que as redes sociais conferem para
todo e qualquer discurso; na "rede" há os bem fundamentados e os
fundamentalistas... Com a licença para o trocadilho, não acredito nessa simples
razão dicotômica, do "ou isso ou aquilo"; é muito mais complexo. Há
os valores intermediários e os macios; mas, esses valores não encontram
espaços, pois que há as ideias que esqueceram de dançar, de se realizarem em
formas fluídas. E então, há um embrutecimento e uma simplificação no modo de
compreender as circunstâncias e, consequentemente, agir e se posicionar em
relação ao momento em que vivemos.
Repare: quanto mais
duro o pensamento, mais barulhento, mais alto o grito. Pois a certeza é
barulhenta. A dúvida fala mais baixo; a ponderação é algo que requer
desaceleração.
E então, o que vejo são
propriedades que não estão sendo trabalhadas. Quais sejam: a desaceleração, a
ponderação, a busca de observar os fatos sem os fanatismos que reduzem a
existência às dicotomias simplistas e de fáceis dizeres.
Sim, pois junto com a
era desse protagonismo vazio, há uma porção de "jargões compartilhados"
[palavras-Miojo, como costumo me referir]. Ops, se eu não tenho ideia / ou,
palavras para expressar a minha ideia, pego aquela frase de efeito "do
outro" e largo na minha time line e, pronto. Está realizada a micro catarse
individual que se linka a um coletivo. E então, o desejo de pertencimento, de
realização; a impressão de estar "colaborando" com os significados de
mundo se avoluma; se inflam. Enchem-se de orgulho e de plena razão. E é
justamente ali que mora o perigo.
O perigo desses jargões
que pululam em redes e bocas é realmente que o pensamento cristaliza. Encerra-se
na "certeza de que estamos certos". E então, o rechaço do outro
e do pensamento que é um pouco dissonante do "nosso" começam a atuar
como uma espécie de vírus ameaçador. O pensamento começa a gerar 'anticorpos'.
E aí se instaura um ciclo de rejeições e hostilidades à diferença.
Como viver na
diferença... E, num jogo de palavras: “com’viver” na diferença é ter a devida paciência de escutar as
razões do outro. E nós (para "o outro") também somos
"outro". Então, há um apelo, uma necessidade de se falar nisso; de
construir essa noção.
E, como digo na minha
tese [sobre coreografias nas graduações em dança no RS]: há uma pluralidade de
danças que compõem os cursos de graduação em Dança do RS [e aí façamos a
analogia com a sociedade, em relação à pluralidade de pensamentos e concepções de mundo - pois o micro-cosmo de uma sala de aula tem relação
direta com a sociedade]. Então, podemos pensar com Stuart Hall nessas
identidades fixas que buscam uma (re)afirmação. Na instabilidade que é aquilo
que percebemos como "evolução de pensamento e comportamento" nas
sociedades. Na razão cíclica dessas concepções que oscilam entre uma liberdade
de ação e um retorno a uma "ordem perfeita" que havia no passado
(sic). E aqui podemos pensar na democracia (e na sua ausência) nos direitos das
'minorias' (e na ausência desses direitos)... Para algumas pessoas essa
"ausência" se refere exatamente às coisas nos seus devidos lugares
[por isso clamam por retornos absurdos]. Sim, pelo simples fato de que isso faz
parte de suas referências. E essa referência não 'amacia o olhar' para saber
que há outras referências que operam ao seu lado. E lado a lado.
Ao dizer isso,
recordo de uma citação de Max Weber, a qual se encontra como epígrafe da
Parte I, do livro Condição Pós-Moderna de David Harvey; cito:
O destino de uma época que comeu da árvore do conhecimento é ter
de... reconhecer que as concepções gerais da vida e do universo nunca podem ser
os produtos do conhecimento empírico crescente, e que os mais elevados ideais,
que nos movem com mais vigor, sempre são formados apenas na luta com outros
ideais que são tão sagrados para os outros quanto os nossos para nós (Max
Weber, in, HARVEY, 2014, p.
13).
Tuas palavras deflagraram
essas palavras minhas. Mais do que responder ao e-mail recebido, percebo uma
elaboração de minhas incomodações relativas à situação atual de nosso país. É
difícil e tem sido difícil se posicionar - pelo simples fato da violência que
brota à presença de uma ideia que não seja confluente com outras ideias, dos
que estão à nossa volta. Então, ficamos receosos, acuados. E isso incita à
segmentação social; à reunião em guetos; à procura de pares de pensamento. Por
um lado é bom, mas, por outro, também alimenta a dicotomia. Mas, digo: às vezes
isso é um recurso de sobrevivência.
Continuemos, Roberta, continuemos
nossos trabalhos nos lugares que por ora habitamos. Que sejamos fortes,
corajosas, generosas, para podermos colocar em jogo, no ambiente em que estamos,
uma forma macia de existir; fluída. Mas, que façamos, também, escolhas. Que
tenhamos espaço [ou, que consigamos construir esses espaços] para argumentar
nossas escolhas.
No conceito de
coreografia que desenvolvo em minha tese, escrevo que coreografias são
escolhas; são constituídas de escolhas, portanto, de abandonos. Ou seja, para
um movimento estar ali, outro precisou não estar. Podemos agregar outros
movimentos, certamente - e trabalharmos na noção de coreografia
semi-estruturada. Mas, em algum momento será necessária a clareza, para que
tenhamos uma 'estética' que ficará aparente; algo que nos colocará em jogo
politicamente. Pois que a estética anda ao lado da ética – ou, incita as
relações que serão deflagradoras de uma ética, justamente por nos colocar em
jogo com o(s) outro(s). Justamente por operar nessas equações que denominamos
"escolhas" e posicionamentos. [Ando observando as "coreografias cotidianas"... As organizações, as estruturas, os 'figurinos', e, pasme, até as dancinhas!]
Que bom que você me escreveu! E me fez companhia neste tempo em que
fiquei escrevendo essas palavras.
Um forte e afetuoso abraço, cheio de ar na cintura escapular.
Lu.
09/04/2016
Referências:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
10. ed. Rio de Janeiro: DPeA, 2005.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. 25. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2014.
PEDRONI, Roberta. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida
por <lupaludo@terra.com.br>
em: 09 abr. 2016.
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